julho 27, 2011

NUMA MANHÃ

“Se eu pudesse acabaria com você agora!” O Capitão Valente estava disposto a matar a todos de uma só vez com muita fúria e poder. Nas mãos de Alessandro, os bonecos dialogavam em revolta e muita confusão. Um mundo inteiro de imaginação era criado todos os dias para um garoto urbano de apenas oito anos de idade. Um mundo que ele conhecia apenas através da tela de sua televisão. Uma sociedade movida pela tecnologia, violência e das perdas repentinas da inocência.

Alessandro morava num apartamento equipado de todos os brinquedos possíveis. Mas ele não tinha amigos. Outro de seus poucos contatos com o “mundo de lá fora” era através das grades de sua janela, onde se via passar carros  e raramente se ouvia um barulho de conversa no ar. Estudava a maior parte das manhãs com sua tia que havia morado grande parte da sua vida num convento francês.

Alessandro se empolgava com disciplinas como biologia e história. Achava incrível como podia viajar no tempo numa só manhã de aprendizagem, dentro de tantos livros a esconder tantas épocas e descobrimentos. Quanta riqueza os livros lhe proporcionavam!

Filho de mãe altamente ausente, ele já fazia um bom tempo que assimilara a isto. De uns anos para cá, sua mãe havia se dedicado obsessivamente pelo trabalho e por substâncias que cheiravam mal. Ela sempre chegava tarde e irritada em casa, muitas vezes discutindo ao telefone e mal o olhava. Ia diretamente para seu quarto e de lá não mais a via.

Esta situação se repetia frequentemente. Alessandro recorda-se do dia que havia feito um desenho em homenagem a sua mãe para uma data especial e foi recebido por um tapa e tendo sua “obra-prima” sendo rasgada em pedacinhos. Ela não queria saber dele, talvez de ninguém, nem de si mesmo. Ele ficava confuso e retornava a conversar com seus “companheiros animados de quarto” até adormecer.

Por muito tempo o pequeno Alessandro foi sentindo que a ausência de sua mãe não o mais feria e todo seu carinho ficava voltado para sua tia e àquelas aulas preciosas pela manhã. A irritação e descoordenação de sua mãe já não era mais novidade, ela nem sequer o chamava pelo nome.

Foi numa manhã como as outras quando sua tia aprontava uma de suas lições de casa, uma difícil tarefa de matemática,  percebera um barulho vindo do corredor onde ficava o quarto da mãe de Alessandro. Ela se aproximou e lá estava a mãe em seu trágico fim. No chão, várias caixas de remédio, uma garrafa de bebida alcoólica e uma música abafada ao tocar no rádio próximo a sua cama. Alessandro também observava aquela mesma cena com olhos úmidos e atônitos. Não conseguia chorar, pois não havia aprendido. Não conseguia gritar, pois nada saia dentro de si.  Só uma vaga lembrança, uma tonta melancolia. O mundo que ele conhecera com a mãe era ausente de diálogos e de trocas de afeto.  Ele só havia conhecido até agora  o universo  da imaginação e de seus brinquedos. Só conhecia o mundo através daquelas manhãs de aulas que gostaria que fossem intermináveis.

Quinze anos se passaram e Alessandro estava prestes a terminar a faculdade de Medicina, quando numa manhã como outra qualquer e rodeado de amigos, deslocou-se bêbado em direção ao alto de seu apartamento prestes a acabar com sua própria vida. Mas a lembrança daquelas manhãs de aulas com sua preciosa tia e toda a companhia de seu mundo particular, fez surgir uma nova reflexão diante de uma esperança que nunca havia sentido antes. Uma nova fase de vida aproximava-se e todo o amor por aquela que o chamava o fez baixar sua cabeça, fechar os olhos e apenas sorrir de si mesmo. Sorriu para a dimensão da vida, sorriu para sua volta. De passos longos e seguros, continuou a caminhar em direção da voz calorosa que o esperava.


(Joyce Martins)